domingo, 14 de outubro de 2012

OS GUERREIROS DE HITLER

“Eu acreditei, e estava errado.” A demonstração tardia de remorso do marechal-
de-campo Wilhelm Keitel antes dos julgamentos de Nuremberg foi
uma tentativa isolada de um ofi cial nazista enfrentar seu passado. A maior
parte dos ofi ciais do alto escalão que apoiou o ditador em sua guerra de
agressão alegou obediência militar e negou qualquer culpa pessoal. Na Alemanha
pós-guerra, que privilegiava a supressão da verdade em detrimento
de uma investigação honesta, trabalhou-se duro para criar a lenda de uma
Wehrmacht que tinha as mãos limpas, que não participou nem estava ciente
dos assassinatos em massa perpetrados pelo regime.
Desde os primeiros dias da ditadura de Hitler, muitos dos ofi ciais
mais experientes fecharam os olhos para o crescente terror nazista. Desde
o início da guerra, as Forças Armadas, lideradas pelo Estado-Maior Geral,
foram um instrumento fi el de tirania. Nos dias inebriantes das primeiras
vitórias, muitos ofi ciais ansiavam por fama, reconhecimento, promoções e
recompensas. Apenas alguns estavam dispostos a prestar atenção nas palavras
de advertência do general Beck: “a obediência de um soldado tem
limites, que é quando o conhecimento, a consciência e a responsabilidade”
proíbem o cumprimento de uma ordem. Entretanto, poucos tiveram coragem
de oferecer resistência ativa contra os criminosos que controlavam
o país. Visando apenas ascender na carreira, a maioria dos militares mais
experientes se apegou ao conceito de dever e à tradicional obediência de
um soldado. Como o teólogo Dietrich Bonhoeffer previu, “O homem que é
guiado por deveres acabará servindo ao próprio diabo”. Tal profecia viria a
ser materializada pela elite militar da Alemanha nazista.
Mesmo quando se deparavam com crimes monstruosos, a resistência
dos ofi ciais que viam a ideologia nazista com ceticismo permanecia restrita
a um pequeno círculo. Nenhum marechal-de-campo em serviço apoiou o
Introdução
8 Guerreiros de Hitler
homem que quase conseguiu matar Hitler em 20 de julho de 1944. Erich
von Manstein foi um dos que repeliu os conspiradores de maneira categórica:
“Marechais-de-campo prussianos não se rebelam.” Essa tentativa
foi um erro desastroso, pois só a liderança militar teria o poder necessário
para, de dentro, derrubar o Reich de Hitler. A única forma legítima de pôr
um fi m à catástrofe foi chamada de “alta traição”.
No fi nal da guerra, apenas alguns daqueles para os quais Beck dirigiu
seu apelo sobre senso de responsabilidade foram chamados a prestar contas.
O general Beck, porém, manteve-se fi rme em suas convicções e precisou
pagar por elas com a vida. Esses dois diferentes arranjos de circunstâncias
mostram que a Wehrmacht estava acima de tudo, inclusive dos generais.
As carreiras destes seis homens – Rommel, Keitel, Manstein, Paulus, Udet
e Canaris – são muito diferentes, mas todas enfrentaram o confl ito entre
obediência e consciência, entre autocensura e protesto. Eles não poderiam
ser mais díspares. Esta seleção de generais alemães (e um almirante) não é
de todo representativa, mas suas carreiras nos ajudam a responder como
“aquilo” pôde ter acontecido. O que fez esses homens usarem suas habilidades
a serviço de um déspota assassino? O que eles sabiam sobre os crimes do
regime? Até que ponto estavam implicados? Quais os limites da obediência
deles?
“Hitler confi a em mim, e isso é tudo o que desejo”, disse Erwin Rommel
certa vez. A máquina de propaganda nazista transformou Rommel em um
mito que sobreviveu ao Terceiro Reich, ao qual acreditou estar servindo
durante toda a vida. Até hoje a lendária “Raposa do Deserto”, o brilhante
comandante da campanha no Norte da África, tem defensores em ambos
os lados. No auge do sucesso, sua reputação se equiparava à de divisões
inteiras. Por gratidão, Hitler o promoveu e o transformou no marechalde-
campo mais jovem das Forças Armadas. Como ofi cial, havia atingido
seu objetivo, mas foi quando sua derrocada começou. Deste momento em
diante, colecionou derrotas.
Porém, diferentemente de grande parte dos generais da Wehrmacht,
Rommel tinha coragem para criticar Hitler abertamente pelos erros de sua
“liderança”. Em 15 de julho de 1944, exigiu que o Führer abrisse mão do
comando supremo da Wehrmacht. Os conspiradores de 20 de julho souberam
da postura de Rommel e por isso planejavam, caso o golpe fosse
bem-sucedido, nomeá-lo comandante supremo – mas tudo sem informar
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o candidato escolhido, uma vez que Rommel nunca teria aprovado um tiranicídio.
Até o atentado contra a vida de Hitler, ele nutria a ilusão de que
conseguiria persuadir o Führer a selar uma paz em separado com os Aliados
ocidentais. Os homens da resistência tentaram diversas vezes conversar
com o marechal-de-campo, mas sempre fracassaram em razão de seu
confl ito de consciência não-resolvido. De um lado, o juramento de lealdade
que fi zera como soldado e a obrigação de cumprir seu dever. Do outro, a
percepção da realidade militar.
Após 20 de julho, contudo, ele foi alvo de uma “limpa”. O homem que
mexia os pauzinhos nos bastidores era seu inimigo pessoal de longa data,
Martin Bormann, para quem o “general favorito do Führer” era irritante.
Em outubro de 1944, Hitler mandou dois generais à casa de Rommel. Eles
lhe apresentaram uma escolha difícil: suicídio seguido de um funeral de
Estado ou um julgamento diante do “júri popular”* e represálias contra sua
família. Rommel optou pelo fi m da própria vida.
O ilustre soldado nunca soube da exata extensão do genocídio promovido
pelos nazistas. Foi um exemplo de virtude militar em sua forma mais
pronunciada. A seu ver, estava apenas servindo à Pátria; como provou a
história, servia a um criminoso. Assim como muitos alemães, foi convencido
pela propaganda nazista, que, de forma mentirosa, colocava os objetivos
de Hitler como idênticos aos interesses alemães. Quando afi nal, conseguiu
perceber a fraude, houve uma mudança que, forçosamente, permaneceu
incompleta. “Virtudes secundárias como obediência, disciplina e bravura
são admiráveis”, disse seu fi lho, Manfred Rommel, recentemente, “contanto
que estejam a serviço de uma virtude primária: amor à humanidade e à
verdade.” Não era o caso de Erwin Rommel, e é nesse ponto que reside sua
tragédia.
Com Wilhelm Keitel foi diferente. Ele era o arquétipo do soldado submisso
a serviço de um ditador. Sua obediência não conhecia limites. Keitel declarou
após a guerra: “Quando uma ordem me era dada, cumpria o que considerava
ser meu dever, sem me deixar distrair pelas possíveis e nem sempre
verifi cáveis conseqüências.” Sua atitude de devoção a Hitler lhe rendeu o
irônico apelido de Lackeitel (em alemão, Lackey signifi ca “lacaio”). Como
* Tribunal de honra instituído pelos nazistas para investigar os suspeitos de conspirar
contra Hitler. (N.T.)
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uma galinha que toma conta de seus ovos, protegia Hitler dos poucos que
tinham coragem de confrontá-lo.
Entretanto, Keitel era mais do que uma simples marionete com medalhas
penduradas em seu uniforme: no início de 1930, teve papel crucial
no rearmamento secreto do Reichswehr, o que viabilizou as guerras
de agressão de Hitler. Como chefe do Comando Supremo da Wehrmacht,
foi fundamental no envolvimento do Exército nas atividades sangrentas
do regime. As terríveis ordens que assinou – em particular aquelas para a
invasão da União Soviética – abriram caminho para inúmeros crimes de
guerra. A famigerada “Ordem do Comissário” trazia a assinatura de Keitel,
assim como as instruções para transferir 100 mil soldados regulares para
o SD (o “Serviço de Segurança” de Himmler) como reforço para os assassinatos
em massa. A morte de mais de 3 milhões de prisioneiros de guerra
soviéticos por inanição ou doenças foi aprovada por ele, com o comentário
de que “estava apenas lutando contra uma ideologia”.
Nas últimas semanas da guerra, sua ordem para que os soldados alemães
se “livrassem”, sem qualquer julgamento, dos desertores custou a vida
de milhares de pessoas, sobretudo jovens. O fato de Keitel, entre outros, ter
sido forçado a assinar a rendição incondicional da Alemanha é visto como
uma das maiores ironias da história. Mesmo assim, com seu monóculo e
seu bastão de marechal, continuava se portando como um ofi cial prussiano
que vivia apenas para o “cumprimento do dever”.
Entretanto, com sua submissão e obediência ilimitada, Keitel não era
um mero produto do sistema, ele preenchia os requisitos mais importantes
para o bom funcionamento do sistema: a supressão de escrúpulos e reservas
em favor da realização incondicional das vontades do Führer.
O remorso de Keitel diante dos juízes em Nuremberg, a declaração de
que havia “acreditado” e que estava “errado” vieram tarde demais, e diante
de erros tão monstruosos soou tão tola quanto cínica. Seu último desejo,
morrer fuzilado como um soldado, foi recusado pelos juízes. Keitel foi enforcado
em 16 de outubro de 1946.
Erich von Manstein sobreviveu à guerra. Para Hitler, Manstein tinha o
“melhor cérebro” de seus generais; para os Aliados, era “o adversário mais
perigoso”. Sua vida foi similar à da maioria dos generais prussianos conservadores
que não gostavam do nazismo e se distanciaram dele, mas que ao
mesmo tempo serviram a uma guerra cruel, como ferramentas nas mãos
de Hitler. Em 1940, Erich von Manstein elaborou o plano para a invasão da
França, solidifi cando sua reputação de “gênio militar”. Vários generais se
Introdução 11
pronunciaram contra os conceitos arriscados de Manstein. Apenas Hitler
apoiou de forma veemente o plano “suicida” que lhe rendeu o maior triunfo
militar de sua carreira – a vitória sobre a França.
Após a invasão da Rússia em 1941, Manstein e o 11o Exército conquistaram
a Criméia e tomaram a principal fortaleza de Stálin, Sebastopol. Depois
disso, já promovido a marechal-de-campo, não conseguiu romper o
cerco soviético ao 6o Exército. Pediu a Hitler que ordenasse uma fuga, mas
o Führer se recusou, selando o destino de mais de 250 mil soldados alemães
encurralados na região de Stalingrado. Após a rendição de Stalingrado,
Manstein desejava um honroso “empate” militar, mas para Hitler isso era
algo inconcebível. Depois de muitos desentendimentos a respeito da condução
da guerra no leste, Hitler retirou Manstein do comando do Grupo de
Exércitos Sul. O grande estrategista jamais recebeu outro cargo.
As tentativas da resistência militar para convencer Manstein a apoiar
a causa foram recusadas. Profundamente arraigado à tradição prussiana,
sentiu-se, até o fi nal, comprometido com o juramento de obediência que
fi zera ao Führer. Contestava Hitler em questões militares, mas assassiná-lo
seria demais para ele. Sempre se referia a si mesmo como um soldado “apolítico”,
que fazia aquilo em que era melhor: conduzir a guerra sem considerar
a natureza criminosa dos objetivos perseguidos por Hitler.
Por fi m, veio a catástrofe e o próprio reconhecimento de que “minha criação
e educação não me prepararam para os desafi os da ditadura de Hitler”.
Em 1949, um tribunal militar britânico em Hamburgo condenou Manstein
a 18 anos de prisão. Cumpriu apenas parte da sentença. Em maio de 1953,
graças a protestos de Churchill e Montgomery, foi libertado por alegar que
estava com problemas de saúde. Ao sair, ofereceu seus serviços como consultor
para a criação do Bundeswehr, o Exército da República Federal.
Manstein era um estrategista talentoso, porém inocente em termos políticos.
Não foi capaz de reconhecer a natureza e os verdadeiros objetivos
de Hitler. Colocou suas habilidades a serviço de um criminoso, acreditando
servir à pátria. Essa foi a contribuição de Manstein para a ruína da Alemanha,
país que ele, como comandante militar, acreditava poder preservar.
Não era nada menos que um soldado brilhante, mas também não era nada
além disso.
O mesmo se aplica a Friedrich Paulus. É impossível dissociar seu nome
da derrota em Stalingrado. Como comandante do 6o Exército, encurralado
contra o rio Volga, não teve qualquer chance contra a esmagadora superioridade
do Exército Vermelho. A cada dia as tropas cercadas viam seus
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suprimentos minguarem; e a cada dia a distância da linha de frente alemã
tornava-se maior. Entretanto, após semanas de resistência, as exaustas unidades
de Paulus conseguiram conter oito exércitos soviéticos e uma considerável
parte da Força Aérea deles. Dessa forma, permitiram que o Grupo
A do Exército alemão se retirasse de suas operações no Cáucaso.
Porém, para mais de 250 mil soldados da Wehrmacht, a situação não
oferecia qualquer esperança. Todas as tentativas de obter uma ordem de Hitler
para evacuar a área com uma fuga para o oeste fracassaram. O ditador
decidiu que era melhor sacrifi car o 6o Exército do que abandonar voluntariamente
Stalingrado, a cidade que trazia o nome de seu adversário mais
importante. Mandou por rádio uma mensagem cínica de agradecimento às
tropas sitiadas por terem “contribuído para salvar a civilização ocidental”.
Paulus sabia que sua promoção a marechal-de-campo pouco antes do fi m
do cerco era uma ordem de suicídio. Entretanto, não concedeu tal satisfação
ao Führer: Paulus optou pelo cativeiro. Mas foi só no momento da derrota
que se recusou a cumprir ordens, preferindo ter o mesmo destino de
seus soldados. Em 31 de janeiro de 1943, tornou-se o primeiro marechalde-
campo na história da Alemanha a virar prisioneiro do inimigo.
Os eventos de Stalingrado viraram tema de diversos fi lmes e livros, mas
a história da vida de Paulus, antes e depois do episódio, continuou inexplorada.
Foi ele quem elaborou os planos para invadir a União Soviética.
Mais tarde, como testa-de-ferro do “Comitê Nacional pela Alemanha Livre”,
tentou convencer seus antigos colegas de Exército a mudarem de lado.
Como testemunha de acusação em Nuremberg, ofereceu provas contra seus
ex-superiores. Foi prisioneiro na União Soviética até 1953, sendo o troféu
de guerra mais importante de Stálin. Durante a Guerra Fria, sua decisão de
permanecer na comunista Alemanha Oriental rendeu amplo material para
a guerra propagandística de ambos os Estados alemães. Assim, Paulus, que
sempre quis continuar sendo um ofi cial apolítico do Exército, tornou-se
pela segunda vez objeto de escrutínio público. Isso o destruiu. Quatro anos
após ter sido libertado, morreu em Dresden, no dia 1o de fevereiro de 1957,
no 14o aniversário da rendição de Stalingrado.
Ernst Udet não viveu o sufi ciente para ver a rendição. Ele disse o seguinte
sobre si mesmo: “Para voar, às vezes é necessário fazer um pacto com o
diabo. Mas é preciso não se deixar devorar por ele.” Tendo servido de inspiração
para Harras, herói da peça The Devil’s General, de Carl Zuckmayer,
seu destino não fi cou esquecido na Alemanha pós-guerra. No entanto, a
licença poética a que Zuckmayer se permitiu distorceu nossa visão do “verIntrodução
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dadeiro” Udet. Para o regime nazista, sua fama de ás da aviação durante
a Primeira Guerra Mundial e de ator de fi lmes de aventura renderam um
bem-vindo material de propaganda para a criação da Luftwaffe. Herman
Göring promoveu Udet e o transferiu de uma cabine de avião para uma
mesa de escritório, como “general de armamentos aéreos”, de onde ele ajudou
a coordenar o rearmamento da Alemanha.
O sucesso da Luftwaffe durante as blitzkrieg convenceram até mesmo
Udet da invencibilidade dos bombardeiros e aviões de caça alemães. Porém,
no Ministério da Aviação de Göring, ele parecia ser o homem errado no
lugar errado. O piloto talentoso acabou por se tornar um administrador
ruim. Seu rival Erhard Milch declarou: “De forma acertada, Hitler considerava
Udet um dos maiores pilotos da Alemanha e, equivocadamente, um
dos melhores tecnólogos em aviação.” Envolvido com uma área de grande
responsabilidade e em contínua expansão, foi derrotado nas disputas com
sua equipe e com seus superiores, que, já cansados das metas inatingíveis,
deixaram-no sozinho para tomar decisões que seriam fatais para ele.
Passava menos tempo em seu gabinete do que aproveitando a vida e correndo
atrás de mulheres nos bares de Berlim. Nas festas e encontros nazistas,
era sempre o centro das atenções, famoso por seus inúmeros casos amorosos e
por suas bebedeiras. As socialites de Berlim amavam as caricaturas que ele fazia
e as histórias que contava. E Udet desfrutou ao máximo de sua popularidade.
O fraco desempenho da Luftwaffe contra a Força Aérea Real britânica
acabou com as ilusões de invencibilidade dos pilotos alemães e expôs os erros
de planejamento. Göring, o chefe da Luftwaffe, pegou Udet como bode
expiatório e o demitiu de seu cargo. Em 17 de novembro de 1941, Ernst
Udet pôs fi m à própria vida. Na parede de seu quarto, deixou uma carta
de despedida com acusações contra seus rivais no Ministério da Aviação.
A última frase era dirigida a Hermann Göring: “Ironsides,* você me traiu.”
O regime tentou encobrir o suicídio. Anunciou que Udet havia sofrido um
acidente durante um teste de vôo e encenou um funeral grandioso com
honras de Estado. Com a voz falsamente embargada, Göring lamentou a
perda de seu “melhor amigo”.
Diferentemente de Harras, o piloto da peça de Zuckmayer, Udet não
participou da resistência antinazista. Seu suicídio não foi resultado de algu-
* Referência aos membros da cavalaria de Oliver Cromwell (1599–1658), líder político e
militar britânico conhecido por lutar contra o absolutismo e a favor do parlamentarismo.
(N.T.)
14 Guerreiros de Hitler
ma percepção a respeito da natureza criminosa do regime. Sua oposição ao
Terceiro Reich não foi além de piadas banais feitas no refeitório dos ofi ciais.
Anos de bebedeira e abuso de drogas o transformaram num alvo fácil para
as intrigas de seus rivais. Do heróico piloto da propaganda nazista restou
apenas a beleza aparente.
Se Udet sabia ou não dos rumos que o regime estava tomando, não
ofereceu qualquer indicação disso às pessoas que o cercavam. Ele deve ter
tido suas dúvidas, mas o certo é que escondeu os fracassos de sua vida profi
ssional e pessoal por trás da máscara de beberrão feliz até atingir um nível
tal de ruína física e psíquica que a única saída seria o fi m teatral que ele
próprio escolheu.
Wilhelm Canaris não teve a oportunidade de se suicidar; foi executado pelo
regime ao qual serviu. Sua rede de espionagem era conhecida como a “arma
milagrosa” de Hitler nas batalhas invisíveis dos serviços secretos. Por causa
de suas conexões com os homens que tentaram matar o ditador, e devido
ao fato de ter sido morto em um campo de concentração, Canaris tornouse
uma lenda da resistência militar. O chefe do Abwehr, o serviço secreto
militar, era um mestre da dissimulação e do jogo duplo. De forma discreta
e efi ciente, seus espiões abriram caminho para as guerras de agressão promovidas
por Hitler, enquanto o próprio Canaris trabalhava para derrubar
o ditador. Pediu a seus agentes que cooperassem com a Gestapo, a polícia
secreta mais temida da Alemanha, ao passo que ele próprio, alegando estar
conduzindo operações do serviço secreto, organizava a fuga de vítimas de
perseguições raciais e políticas.
O jogo arriscado do almirante é simbolizado por sua relação de amor
e ódio com Reinhard Heydrich, chefe do Serviço de Segurança da SS.
Enquanto os agentes do Abwehr e seus rivais do Escritório Central de Segurança
do Reich, comandado por Heydrich, travavam uma batalha nos
bastidores, durante muitos anos os dois chefes mantiveram uma “amizade”
no âmbito privado, com direito a noites de muita música e manhãs de
cavalgadas.
Será que era necessário ser cúmplice de Hitler para conseguir se manter
como seu adversário? Como chefe da Polícia Secreta de Campo, Canaris
foi responsável pelo papel desempenhado por seus agentes nas atrocidades
cometidas na Polônia e na Rússia. No entanto, ao mesmo tempo ele agia
como um “anjo protetor” para aqueles de seu comando que faziam parte
da resistência, como Hans Oster e Hans von Dohnanyi, cujos planos para
derrubar Hitler eram incentivados por ele.
Introdução 15
No início de 1944, erros graves nas operações de espionagem do Abwehr
criaram o pretexto para que Canaris, já sob suspeita, fosse retirado do cargo
e mandado para um posto sem importância. Após o atentado contra a vida
de Hitler em 20 de julho de 1944, o almirante foi preso e por fi m enviado
para o campo de concentração de Flossenbürg. Apenas alguns dias antes
do fi nal da guerra, foi assassinado por um esquadrão da SS.
Só no último momento confessou ter tido algum envolvimento com
a resistência. A partir do momento em que foi nomeado chefe do serviço
secreto, tentou jogar uns contra os outros, fi cando encurralado entre a
obediência e a moralidade. Sem a ajuda dele, muitas pessoas não teriam
sido salvas. Mas muitos morreram por causa de suas ordens. Como vários
dos conservadores da era do kaiser, ele acreditava estar servindo à pátria,
e não ajudando Hitler. Continuou agarrado à sua crença equivocada até
o último momento.
Gostaria de agradecer a todos que me ajudaram na produção deste livro:
os autores Christian Deick, Friederike Dreykluft, Rudolf Gültner, Henry
Köhler e Jörg Müllner; os pesquisadores Silke Schläfer, Christine Kisler e
Heike Rossel; e os meus consultores Ralf Georg Reuth, Winfried Meyer,
Sönke Neitzel, Torsten Dietrich e Armand von Ishoven. Sobretudo, gostaria
de agradecer a meu editor Johannes Jacob, sem a sensibilidade e a habilidade
dele este livro não seria possível.

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