segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O MASSACRE DESUMANO EM GUERNICA

Bombardeio em Guernica: Chuva de fogo

Há 70 anos, a cidade basca de Guernica foi vítima do primeiro grande bombardeio moderno. A destruição, orquestrada pelos nazistas, serviu de ensaio para os horrores da Segunda Guerra

Mauro Tracco | 01/05/2007 00h00
Tradicionalmente, a semana em Guernica começava com uma feira livre. Naquela segunda-feira, 26 de abril de 1937, agricultores dos arredores da pequena cidade basca vendiam os frutos de seu trabalho na praça principal. Às 16h30, um único badalar do sino da igreja anunciou a incursão aérea. Dez minutos depois, vieram as bombas. Guernica ficou arrasada – e o mundo foi apresentado ao poder dos ataques aéreos sistemáticos, que se tornariam comuns poucos anos mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial.
Na época do bombardeio, a Espanha vivia a Guerra Civil. Após um fracassado golpe militar contra o governo do socialista Francisco Largo Caballero, em 1936, as tropas do general Francisco Franco não desistiram de tomar o poder. Divididos, os espanhóis passaram a se enfrentar em diversos pontos do país. Os combatentes leais ao governo de esquerda, chamados de republicanos, contavam com o apoio da União Soviética. Já as forças de Franco, os nacionalistas, tiveram a ajuda da Itália fascista de Benito Mussolini e da Alemanha nazista de Adolf Hitler.
Desde o início, Franco havia tentado conquistar Madri. Em abril de 1937, a capital ainda não havia caído e o general decidiu optar por um alvo mais fácil: o norte espanhol. As regiões de Astúrias e Santander e as províncias do País Basco estavam em péssima situação militar. Lá, a força aérea dos republicanos era inexistente. Os céus estavam abertos para as bombas nacionalistas.
Guernica, no País Basco, era habitada por apenas 6 mil pessoas. Não possuía defesa, nem qualquer alvo militar, salvo a ponte sobre o rio Mundaca, cuja destruição poderia dificultar uma retirada do exército basco. Apesar da insignificância estratégica da cidade, seu centro foi alvo do até então mais violento ataque aéreo da história. Mas por quê? Nada de mais. Para os nazistas, foi apenas um teste.
Os protagonistas do ataque a Guernica foram aviadores alemães, com a ajuda – muitas vezes desajeitada – de pilotos italianos. Hermann Goering, comandante da Luftwaffe (a força aérea alemã), revelou em 1946, durante julgamento no Tribunal de Nuremberg, que Guernica foi um estupendo laboratório para ensaiar sistemas de bombardeios com projéteis explosivos e incendiários em uma cidade aberta. O resultado da mórbida experiência se tornou o episódio mais lembrado da Guerra Civil.
Símbolo de autonomia
Guernica não foi a primeira vítima da temida Legião Condor, a unidade militar enviada por Hitler à Espanha. Embora com menos intensidade, as cidades de Durango e Éibar já haviam sido bombardeadas. Mas, além de ter sido acertada com mais violência, Guernica tem uma enorme importância simbólica para o povo basco, que vive no norte da Espanha e no sul da França. A destruição mexeu com os brios desse milenar grupo étnico. Na Idade Média, Guernica foi a vila onde se reuniam as Juntas Gerais (espécie de conselho político) de Biscaia, região habitada pelos bascos. Sob uma árvore do século 14, o Carvalho de Guernica, os monarcas espanhóis juravam lealdade aos Foros Bascos, um conjunto de leis que regulamentava os costumes e os direitos desse povo. Isso mantinha vivo o respeito da Espanha pelos bascos.
A árvore durou 400 anos. No século 19, após sua morte, outro carvalho foi plantado no local. Mas, tempos depois, o governo espanhol resolveu deixar de respeitar os Foros Bascos. Na virada do século 20, o povo basco intensificou seu nacionalismo, pregando até a separação da Espanha. Em outubro de 1936, no início da Guerra Civil, o governo republicano fechou um acordo que dava autonomia ao País Basco (que inclui, além de Biscaia, as províncias de Álava e Guipúzcoa). Durante todo esse tempo, Guernica se manteve como uma referência para a região.
“Os alemães deviam estar cientes dessa importância, mas não acho que isso tenha sido determinante na escolha de Guernica como alvo. Provavelmente a teriam atacado de qualquer jeito”, afirma Félix Luengo, diretor do Departamento de História Contemporânea da Universidade do País Basco. O general Franco, no entanto, certamente enxergou em Guernica uma boa oportunidade de humilhar o povo basco, visto como traidor da causa nacionalista. E, no dia do bombardeio, a cidade abrigava pelo menos mil refugiados, vindos de localidades espanholas que já tinham sido atacadas pelo exército de Franco.
Roteiro macabro
O planejamento do bombardeio é atribuído a Wolfram von Richthofen, então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas alemãs (e primo do Barão Vermelho, lendário piloto da Primeira Guerra). Tudo começou com um único Dornier Do-17, de fabricação alemã. Ele veio do sul e soltou cerca de uma dúzia de bombas de 50 quilos no centro da cidade. As pessoas que estavam na feira correram para abrigos, fazendas e bosques. Após completar a missão, o Dornier voltou para a base. No percurso, cruzou com três Savoia-79 italianos que chegaram a Guernica instantes depois. A patrulha sobrevoou a cidade por um minuto. Tempo suficiente para soltar 36 bombas de 50 quilos. Quando se retiraram, os danos causados ainda eram relativamente pequenos. Apenas alguns prédios haviam sido atingidos, como o quartel-general dos republicanos e a igreja de San Juan.
Às 16h45 começou a terceira onda de bombardeios, executada por um Heinkel-111 alemão escoltado por cinco caças Fiat CR-32 italianos. Às 17h e às 18h, outros dois Heinkel despejaram sua carga explosiva sobre Guernica. Caso os ataques tivessem parado por aí, já seria um castigo excessivo para uma cidade que, até então, havia sido poupada da guerra. Mas o pior ainda estava por vir.
Três esquadrões de Junkers Ju-52 alemães, carregados com projéteis explosivos de até 250 quilos e bombas incendiárias, chegaram a Guernica escoltados por caças Fiat e Messerschmitt Bf-109, o orgulho da aviação nazista. Às 18h30, o primeiro esquadrão de Ju-52 iniciou sua ação. Enquanto a carga dos bombardeiros destruía e incendiava os prédios de Guernica, os caças metralhavam civis indefesos que fugiam. Por cerca de três horas, 40 aviões participaram do massacre.
Logo após a destruição de Guernica, George Steer, correspondente do jornal inglês The Times, notou que o único alvo estratégico da cidade, a ponte sobre o rio Mundaca, ainda estava intacto. Steer percebeu que a prioridade dos nazistas não tinha sido causar danos militares. “O objetivo do bombardeio parece ter sido desmoralizar a população civil e destruir o berço da raça basca”, escreveu.
Na época, o número de mortos divulgado passava de 1600. Hoje em dia, é consenso que o número foi bem menor. Um estudo do historiador espanhol Jesús Salas Larrazábal identificou nome e sobrenome de apenas 120 mortos. “O número de vítimas fatais deve ter sido em torno de 200, mas desde o primeiro momento foram difundidos dados exagerados do total de mortos. Isso multiplicou o impacto da notícia”, diz o basco Félix Luengo.
O general Franco certamente não esperava que o ataque despertasse tamanha comoção na opinião pública internacional. Correspondentes estrangeiros que cobriam a guerra na Espanha visitaram o local do bombardeio na mesma noite e no começo da manhã seguinte. Em poucos dias, o mundo começou a ler nos jornais a história do horror em Guernica. A indignação foi tamanha que franquistas e nazistas trataram de negar a operação. Em 29 de abril, a imprensa favorável a Franco chegou ao cúmulo de dizer que a maior parte dos danos a Guernica havia sido causada por incendiários bascos, para indignar a população e aumentar o espírito de resistência.
A Guerra Civil acabou em 1939, com a vitória de Franco. Ele assumiu o poder e, como era de esperar, suprimiu a autonomia dos bascos. Aliás, durante sua ditadura, dizer que Guernica tinha sido bombardeada podia até dar cadeia. Em 1967, um jovem sacerdote da cidade de Navarra foi julgado em Madri pela “calúnia” de ter escrito que Guernica havia sido destruída pela força aérea nacionalista.
Alguns estudiosos espanhóis, como Onésimo Diaz, professor de História da Universidade de Navarra, não discutem a violência do ataque, mas acreditam que não foi isso que colocou Guernica na história. “Se não fosse pelo quadro homônimo de Picasso, Guernica não teria tido mais repercussão que outras cidades bombardeadas”, afirma. Poucos anos depois, o que acontecera naquele 26 de abril se tornaria tragicamente comum. Em setembro de 1939, o mesmo Von Richthofen comandou o bombardeio nazista de Varsóvia, na Polônia, no primeiro mês da Segunda Guerra. Durante o conflito, os dois lados usariam aviões para arrasar cidades inteiras, matando dezenas de milhares de pessoas por vez. O fim da Segunda Guerra, aliás, só chegaria em 1945, quando as japonesas Hiroshima e Nagasaki viraram pó sob bombas atômicas despejadas por aviões americanos.
Após o bombardeio de Guernica, restou ao povo basco o consolo de ver que o carvalho plantado no século 19 não tinha sido atingido – foi salvo por estar longe do centro da cidade. Em 1979, quatro anos após a morte de Franco, a árvore ainda estava viva para acompanhar o tratado que devolveu a autonomia para o País Basco. O velho carvalho morreu após uma estiagem em 2003. Mas cedeu seu lugar à terceira árvore do mesmo tipo – que, impávida, segue a celebrar a autonomia basca.

Asas da morte

Conheça os aviões alemães e italianos que participaram do ataque a Guernica
Dornier DO-17 E
Com sua fuselagem estreita, o bombardeiro era conhecido como “lápis voador”. Foi um deles que soltou as primeiras bombas em Guernica. Serviu os nazistas nos três primeiros anos da Segunda Guerra.
Comprimento: 16,25 m
Envergadura: 18 m
Peso máximo: 7040 kg
Velocidade máxima: 355 km/h
Armamento: 4 metralhadoras de 7,9 mm
Carga de bombas: 750 kg
Fiat CR-32 Bis
Caça responsável pela escolta dos Junkers em Guernica, foi tão bem-sucedido na Espanha que a Itália achou desnecessário modernizar sua frota. Na Segunda Guerra, o CR-32 foi presa fácil para os caças ingleses.
Comprimento: 7,45 m
Envergadura: 9,5 m
Peso máximo: 1865 kg
Velocidade máxima: 341 km/h
Armamento: 4 metralhadoras (2 de 12,7 mm e 2 de 7,7 mm)
Carga de bombas: 100 kg
Heinkel HE-51 B1
Durante a Guerra Civil, esse caça alemão, usado para metralhar a população de Guernica, foi inferior aos aviões russos dos republicanos. Por isso, não foi usado na Segunda Guerra.
Comprimento: 8,4 m
Envergadura: 11 m
Peso máximo: 1895 kg
Velocidade máxima: 330 km/h
Armamento: 2 metralhadoras de 7,9 mm
Heinkel HE-111 B
O bombardeiro médio que atuou na terceira onda de ataques à vila basca foi uma das principais máquinas da Luftwaffe no começo da Segunda Guerra. Destacou-se durante os ataques contra a Inglaterra, em 1940.
Comprimento: 16,4 m
Envergadura: 22,6 m
Peso máximo: 10000 kg
Velocidade máxima: 370 km/h
Armamento: 3 metralhadoras de 7,9 mm
Carga de bombas: 1500 kg
Junkers JU-52/3M
A maior parte das bombas que destruíram Guernica saiu de Junkers Ju-52. Mas, durante a Segunda Guerra, ele foi empregado principalmente como avião de transporte e lançamento de pára-quedistas.
Comprimento: 18,9 m
Envergadura: 29,24 m
Peso máximo: 10500 kg
Velocidade máxima: 277 km/h
Armamento: 3 metralhadoras de 7,9 mm
Carga de bombas: 1500 kg
Messerschmitt BF-109 B
Considerado por muitos como o maior caça de todos os tempos, combateu em todas as frentes da Segunda Guerra, do início ao fim. Em Guernica, seus pilotos metralharam os civis que fugiam das explosões.
Comprimento: 8,7 m
Envergadura: 9,9 m
Peso máximo: 2197 kg
Velocidade máxima: 465 km/h
Armamento: 2 ou 3 metralhadoras de 7,9 mm
Savoia-Marchetti CM 79-I
A patrulha encarregada de destruir a ponte sobre o rio Mundaca era composta por esses bombardeiros médios italianos, mas os pilotos erraram feio o alvo. O Savoia 79 foi usado como bombardeiro e torpedeiro na Segunda Guerra.
Comprimento: 15,8 m
Envergadura: 21,2 m
Peso máximo: 10480 kg
Velocidade máxima: 430 km/h
Armamento: 4 metralhadoras (3 de 12,7 mm e 1 de 7,7 mm)
Carga de bombas: 1250 kg (ou 1 torpedo)

Legionários nazistas

Hitler enviou 16 mil homens à Espanha
A Guerra Civil Espanhola não poderia ter vindo em melhor momento para os alemães. Eles puderam aperfeiçoar táticas e equipamentos que, pouco depois, seriam usados na Segunda Guerra Mundial. Entre os 16 mil homens enviados por Hitler durante todo o conflito, havia unidades do Exército e da Marinha, mas os aviadores eram maioria. A força de intervenção, batizada de Legião Condor, foi decisiva para a vitória dos nacionalistas do general Franco. A Legião Condor foi oficialmente criada em novembro de 1936, mas os primeiros aviões alemães entraram em ação antes disso. Em agosto, uma operação levou até Sevilha 14 mil soldados de Franco que haviam ficado isolados no Marrocos – o feito ficou conhecido como a primeira “ponte aérea” da história militar. Apesar de ter feito diversas missões de apoio a tropas terrestres, a Legião se destacou mesmo por seus bombardeios. Enquanto teóricos militares da época debatiam a eficácia de ataques aéreos, os alemães testavam isso na prática.

Bascos sem Guernica

Obra-prima de Picasso não foi liberada para o aniversário do bombardeio
Há um ano, o governo basco solicitou ao Ministério da Cultura da Espanha o empréstimo do quadro Guernica, de Pablo Picasso. O objetivo era expô-lo no museu Guggenheim de Bilbao durante a cerimônia dos 70 anos do bombardeio, completados em abril de 2007. Assim que soube do pedido, a ministra espanhola da Cultura, Carmen Calvo, avisou que o quadro não sairia do museu Reina Sofía, em Madri. “Eu não faço política com peças do patrimônio público espanhol”, defendeu a ministra. Revoltada, a porta-voz do governo basco, Miren Azkarate, afirmou não entender por que uma obra que já viajara meio mundo não poderia fazer um curto traslado de ida e volta. No fim das contas, os bascos verão apenas uma reprodução do quadro, exposta na praça dos Foros, em Guernica (a 30 quilômetros de Bilbao). Guernica foi pintado ainda durante a Guerra Civil. Em janeiro de 1937, o governo republicano pediu a Picasso que fizesse um quadro para decorar o pavilhão espanhol da Exposição Internacional de Paris. O objetivo era fazer propaganda contra a insurreição liderada por Franco. Comunista, o pintor espanhol aceitou a tarefa. Só não sabia o que colocar na tela. Isso mudou no fim de abril, quando jornais franceses publicaram fotos do que restara da vila basca. Picasso, que morava em Paris, finalmente encontrou o tema para sua obra. Em 1º de maio, apenas cinco dias após o ataque, ele fez os primeiros esboços. Trabalhando de forma fervorosa, ele concluiu Guernica em 4 de junho. No dia 12 de julho, o painel de 3,49 m por 7,76 m foi exposto ao público. Hoje muitos o consideram a obra-prima de Picasso. Por exigência do pintor, o quadro só pôde ser levado à Espanha após a morte de Franco.

Saiba mais

Livros
The Spanish Civil War, Hugh Thomas, Simon & Schuster, 1994
É considerado o melhor livro sobre o conflito. A reedição de 1994 traz revelações sobre atrocidades contra civis.
La Destrucción de Guernica – Un Balance Sesenta Años Después, César Vidal, Espasa Calpe, 1997
O renomado historiador espanhol estudou arquivos alemães e espanhóis para fazer um balanço do ataque a Guernica.  Abril

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